Sentença aqui, acórdão ali, decisão de turma acolá e o legal design encontra seu lugar no judiciário. O que, à primeira vista, muito me surpreende. Sempre achei que esse seria um movimento que viria do extrajudicial e aos poucos fosse migrando para as petições e para os gabinetes. Primeiro, na minha cabeça, seriam os contratos. Depois, petições mais enxutas. E por último, lá bem por último, seriam as sentenças. A quebra dessa expectativa, que era mesmo bem infundada, me faz pensar que, bom, no fim das contas esse é um mundo que implora novidades. Em todos os âmbitos. Em todas as práticas. Nas empresas, escolas, escritórios e também, é óbvio, nos gabinetes.
Tenho um apreço indizível por gabinetes. Quase toda a minha prática jurídica se deu em um. E minha prática diz muito da minha formação. Quando falo de direito em tons de rosa também me refiro aos incontáveis processos previdenciários - e, portanto, rosas - que toquei, analisei, carimbei, assinei e minutei despachos, decisões, mandados e acórdãos. A experiência em um gabinete é o contato com a justiça crua. É entender o tempo do processo, a qualidade das atuações, os esforços empreendidos. A máquina por dentro. E é extremamente diferente do escritório.
Tive a oportunidade de depois ir fazer estágio em um dos escritórios que antes eram objeto do meu olhar como estagiária do judiciário. E a experiência de trocar de pólo foi incrível. Tudo ganhou outros contornos. E muitas das falhas que eu via de um lado, passei a ver do outro. No gabinete a gente não precisava esperar horas pra falar com alguém do INSS para conseguir uma informação - e isso representava um desgaste terrível no trabalho de escritório. A despreocupação que os agentes do judiciário tinham com o repasse de informações - banais que fossem - vistas do lado do advogado representavam uma dor que dali de dentro da secretaria eu jamais sentiria.
Porque o lado do advogado é diferente. É o lado do humano visceral, que tem fome, pressa, que se estressa, liga chorando, tem seu número no WhatsApp e manda mensagem de madrugada. É o lado do profissional que ganha pouco pra trabalhar muito, sem perspectivas maiores e sempre com medo de ser o próximo a ser dispensado. Muitas vezes sem ter seus direitos básicos assegurados, submerso em condições indignas de trabalho em termos de carga horária, retribuição financeira e também de trabalho emocional - podemos falar mais sobre isso depois, é claro.
A pressão é terrível em ambos os lados e a sobrecarga de trabalho e de responsabilização é quase que constitutiva. A exigência de profissionalismo, seriedade, pontualidade e acurácia é a mesma. E as pessoas mais bonitas, inteligentes e profissionais que conheci ocupavam ambos os lados. É por isso que eu acho o direito bonito. Talvez porque tive essa sorte de me deparar com gente bonita que faz direito. Talvez pelo impacto que tenha percebido que ele faz na vida das gentes, sobretudo quando pautado por uma atuação humanizada. Talvez por essa minha mania de ver beleza na rudeza. Mas é o que eu acho. E ver esse direito se deixar permear por coisas que acho ainda mais bonitas, como é o caso do legal design, é uma área de respiro, é meu espaço de construir certezas e predições de futuros.
Então, feitas as preliminares, vamos lá, à pergunta que ilustra esse texto - que é no fundo desabafo, sempre desabafo: a sentença do futuro será high-tech ou poética? Quer saber de onde tirei isso? Bom, lá vai:
Seguem as provas:
Caríssimos leitores, sinto pelo constrangimento de sempre. Esse é um blog de legal design que se propõe constrangedor em suas proposições poéticas, em suas utopias de direito e linguagem. Que abdica de qualquer pretensão de neutralidade e diz a gritos que espera, sim, um novo mundo. E que se propõe aberto a esse novo mundo, que até pode ser high-tech, desde que seja também poético. Esse é o meu ponto.
Coraci Pereira da Silva é a magistrada que proferiu a sentença. E uma busca rápida no Google nos direciona a uma outra notícia, que contra d'uma outra história da Dra. Coraci, excelentíssima e humaníssima. E a história diz assim:
“O que realmente tem valor é o afeto que trazem no coração”. Foi com esta frase que Coraci Pereira da Silva, Juíza de Direito na Vara de Família e Sucessões da Comarca de Rio Verde (GO) e membro do IBDFAM, proferiu sentença que determinou o reconhecimento de filiação socioafetiva entre avô, filhos e netos.
A Dra. Coraci me diz mais sobre o legal design que eu quero ver por aí do que todos os outros. E que me perdoem todos os outros. São belíssimas todas as tentativas. Mas a subversão da linguagem e a inclusão do poético realmente me pautam. Uma juíza que fala de corações. Uma sentença que exprime a importância dos afetos. É sobre isso. Muda o eixo. Inicia um debate pautado em outra narrativa. Não precisa enfeitar com mais nada. Não consigo imaginar nada que possa - ou ao menos deveria, dentro da minha utopia - tocar mais as pessoas. Nada que deixe o humano mais ao centro. Fico imaginando a minha avó - minha famosa avó - lendo uma sentença que tem um poema. E ela entenderia. Como não entenderia outras maledicências e covardias tecno-jurídicas, mesmo que coloridas, 'inda que cor-de-rosa.
Quando digo que design é sobre relação, digo a sério. O direito é sobretudo linguagem, e aqui é sempre preciso lembrar Bourdieu (1977): "o poder da palavra é o poder de mobilizar a autoridade acumulada pelo falante e concentrá-la num ato linguístico". E não vou citar Paulo mais uma vez, mas vocês já sabem. Eu adoro os elementos gráficos. Sou suspeita pra falar. Mas quando pensamos em design como relação, como propõe Landim, a gente consegue abstrair da forma e entender o movimento. E, observando o movimento, consegue ver a cadeia de mudanças. É nesse sentido que digo que a Dra. Coraci, pra mim, foi a maior legal designer do judiciário de 2021. Embora não tenha utilizado elemento gráfico nenhum. Porque propõe uma subversão que elemento gráfico nenhum permite. Porque inclui o poético como possibilidade. Porque fala dum lugar de quem tem coração e entende de corações e é, portanto, humano.
O legal design que eu acredito é um movimento teórico e cientificamente embasado que se pauta, sobretudo, na inclusão do humano como centro do sistema de justiça. É um movimento global, que vai muito além de tentativas de defini-lo em legendas de Instagram e posts de blog como esse. Como movimento de humanização, independe do manejo de técnicas de design gráfico. Porque é sobre gente, não sobre as coisas. É, sobretudo, uma proposta de inovação do direito através da sua humanização (isso é Hagan). E não há caminho melhor pra isso do que o poético, do que a arte, do que a linguagem, do que o design, seja gráfico, de serviços, de experiência.
A inovação me encanta porque, apesar de abraçar metodologias, é sempre anti-fórmula, é sempre uma forma de interferir no status quo (isso é Tim Brown, que fique claro), ou seja, uma maneira de dar outras formas àquilo que está posto. E a forma é importante, é claro, a gente adora. Mas não sustenta o movimento. É preciso ir além. É preciso ser humano. O advogado do futuro pode ser um robô, mas também pode ser um advogado com garantia de direitos trabalhistas e condições dignas de trabalho. Cabe a nós ocupar esse espaço e decidi-lo. Uma sentença pode ser um espaço de abstrações gráficas mais ou menos complexas, com maior ou menor grau de "adequação estética", ou um recurso que realmente atinja o humano em termos de comunicação efetiva. Isso vale para contratos, petições e coisas tais.
E pra você: a sentença do futuro será high-tech ou poética?
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